Droga está presente em todas as classes sociais; Governo se omite e sociedade encara como caso de polícia
Por: Thiago Fidelis e Felipe Carvalho
Como acontece num navio que afunda lentamente, a água entra pelo casco, vai subindo devagar – nem tanto assim – e só causa preocupação no andar de cima quando chega ao salão nobre. Durante 25 anos o flagelo do crack tem sido negligenciado pela sociedade. No longínquo ano de 1986, a revista VEJA já fazia menção à droga, um dos assuntos em voga na campanha presidencial nos Estados Unidos, vencida por Ronald Reagan.
Hoje, a droga afeta muito pobres e muito ricos, mas com uma diferença básica. Enquanto abastados são tratados como doentes e vítimas de uma vida de excessos, os pobres são vistos como caso de polícia.
Cabe relembrar a origem das pedras assassinas. O crack surgiu no fim dos anos 1970 nos EUA e logo virou um sucesso comercial entre os dependentes mais pobres - pela potência e baixo preço - em relação à cocaína, droga da moda à época. Sua composição química é dar calafrios. A partir da pasta base das folhas de coca juntam-se outros produtos nocivos ao ser humano, como o ácido sulfúrico, querosene, solvente e cal virgem. Ao serem processados e misturados formam uma pasta homogênea, de um branco meio sujo, onde se concentra mais ou menos 50% de cocaína. O crack é tão perigoso quanto degradante e mortal.
Alguns anos depois, entrou no Brasil. Em São Paulo, foi rapidamente assimilado pela população de rua. Hoje, assistimos a cenas lamentáveis na cidade mais importante do país. Verdadeiros zumbis lotando as ruas da região do centro velho. Foi referindo-se a esse lugar que surgiu a expressão cracolândia, hoje usada genericamente para se referir a lugares onde o consumo da droga é ostensivo.
No Rio de Janeiro, onde se pensava que o crack não vingaria – por acabar com a clientela, literalmente – a droga chegou e ficou. A cada ano se apreende mais. Um balanço divulgado pelo Instituto de Segurança Pública (ISP) mostra que as apreensões da pedra aumentaram nos primeiros seis meses de 2010, em comparação ao mesmo período de 2009. Se há dois anos a droga representava 11,8% do total apreendido, no ano passado esse percentual subiu para 17,2%.
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Dependente é levado à força por agentes da prefeitura (foto: Gov.Estado) |
Outro estudo, realizado pela Fundação Oswaldo Cruz, revela algo ainda pior: usuários de outras drogas também consomem crack. No final de 1990 o consumo não passava de 5%; Em 2010, esse percentual já era de 90%. A pesquisa revela ainda que cada vez mais crianças e adolescentes usam drogas pesadas. Dado para o qual o balanço do ISP também chamou a atenção, ao mostrar que o número de menores recolhidos aumentou 30% de um ano para outro. “A Cracolândia é pior que o Holocausto”. A frase é da Juíza Titular do Juizado da Infância e Juventude, Ivone Caetano, ao apoiar a decisão da Prefeitura do Rio de internar menores dependentes à força.
Largo da Glória: Terra de Ninguém
A cracolândia da Glória, Zona Sul, é outra das grandes. Quando a noite chega, dezenas de pessoas se espalham pelas praças escuras do bairro para acender os cachimbos.
Terça feira à noite. O movimento é intenso. Em frente à Rua Santo Amaro, principal acesso à favela de mesmo nome, o vaivém de pessoas deixa claro que algo está acontecendo. De repente surgem dois homens, em estado lastimável, cantando alto, dançando no meio da rua. Quinze minutos depois, voltam a subir a Santo Amaro. É assim a noite toda.
A 50 metros dali, ficam outros dois grupos: Um na Praça Pedro Álvares Cabral, entre o Largo e a Avenida Beira-Mar; outro, na escadaria do Outeiro da Glória, na Rua do Russel.
Bruno, drogas e abrigos
A história de Bruno (nome fictício) ilustra bem a devastação causada pelas pedras. Nós o encontramos pedindo dinheiro na Rua Silveira Martins, próximo ao metrô do Catete. Magro, razoavelmente limpo, com fome, uma camisa que um dia foi branca e um short preto dois números maior. Muito comunicativo, ele é que puxa conversa. Diz que teve sorte no dia, porque conseguiu quinze reais. Tem 14 anos e estudou até a quinta série. Há um ano, abandonou a casa do pai em Duque de Caxias, Baixada Fluminense. Tentou morar com a irmã, mas não deu certo. Hoje, mora na rua. A criatividade e a busca por drogas cada vez mais fortes o levaram a uma variante do crack: o desirée. Ou simplesmente zirrê. "Não vou te enganar não, tio. Eu uso droga às vezes, zirrê. Mas tô legal, não sou viciado não. Só crack é sinistro, mas zirrê é tranqüilo". |
O zirrê é uma mistura de crack e maconha. Tem que comprar um pouco de cada um e misturar. Normalmente se fuma como um cigarro de maconha. Alguns traficantes, para aumentar a dependência de seus clientes, fazem essa mistura na própria trouxinha. Eles nem sentem. Em pouco tempo estarão todos viciados.
Bruno mostra uma espécie de rodo, que usa para limpar os vidros dos carros. Com o dinheiro que ganha, às vezes, compra bananada para vender nos sinais. "Isso se o choque de ordem não aparecer, né tio? Aí complica, e eu vou pro sinal limpar os vidros dos carros. A Kombi deles vem, pega a gente e joga na favela. Uma vez, tive que sair correndo, porque eu não era da área que me largaram".
Ser levado em uma Kombi para um lugar desconhecido não é o pior que pode acontecer a um menor de rua, como é o caso de Bruno. O inferno, segundo ele, é parar em um abrigo. "Lá é brabo, tio. Uma vez eu fui parar num abrigo lá no Tancredo Neves, perto de Santa Cruz. Os caras mais antigos batem na gente, neguinho entra pra vender droga, abusam da gente. Por isso que eu falo que eu nunca mais volto pra abrigo, nem pra clínica de recuperação". Marcamos encontro para o dia seguinte, para saber um pouco mais da vida de Bruno. Ele não apareceu mais.
Recentemente, a Prefeitura anunciou a criação de um espaço com 25 vagas para acolhimento e recuperação de menores, aumentando para 105 o total disponível na cidade. A meta é alcançar o mágico número de 130 até julho próximo. Certamente não será suficiente.
Jacarezinho: dignidade passou longe
Na entrada da Favela do Jacarezinho, Zona Norte, a despeito de inúmeras operações policiais, em conjunto com a Secretaria Municipal de Assistência Social, é comum ver crianças aparentando ter dez, doze anos de idade fumando. Menores cada vez menores fumando cada vez mais, acompanhadas de mulheres grávidas.
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Jacarezinho: há remédio para o flagelo do crack? (Extra) |
De tão escandaloso, passou até na televisão. Depois desse episódio, três ações foram realizadas, e quase duzentas pessoas foram detidas. Outros tantos menores foram apreendidos. Um passeio por lá em qualquer dia e a qualquer hora, no entanto, mostra que não se resolvem problemas com canetadas.
Nas manhãs de sábado e domingo, o cenário é ainda mais chocante: Mais de cem pessoas dormindo como animais, em meio a lixo, carros depenados e entulho de uma obra da Prefeitura. De um mês para cá, encontraram um novo abrigo: O vão de uma ponte sobre o Canal do Cunha, onde até um fogareiro foi improvisado, para os dias mais frios. De dia, sem droga, vão tentar arrumar dinheiro ou algo que tenha valor de troca na boca, para desespero dos usuários da estação do metrô de Maria da Graça, cerca de 600 metros dali.
Crack e desgraça, de tanto caminhar juntos, são quase sinônimos. O drama de familiares e usuários, ocorrências policiais registradas à exaustão - quase que diariamente - e opiniões de especialistas sobre os efeitos e as conseqüências terríveis da droga podem ser resumidos em três palavras, simples e contundentes: sofrimento, degradação e morte.
Lamentavelmente, governantes, especialistas e homens da segurança pública fecham os olhos e não conseguem chegar a um consenso no que se refere a uma política eficaz de prevenção e repressão, numa briga desigual. De um lado, o dinamismo e o senso comercial da bandidagem; de outro, a rapidez de jabuti das autoridades. No fogo cruzado, vidas ceifadas pela droga, pelo descaso dos governantes e pela indiferença da sociedade.